segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Sereia de papel

E que deus que me perdoe e não me permita fazer retrospectivas pois nada me dá mais enjoo do que as memórias que nunca foram guardadas e se insistem que as sereias as cantem.
Mas olhai para esse corpo fragmentado que ainda chora forte na sala de cinema e wide and sea, e que pensa forte como pode ser um e ser tudo e ser completa se não sei onde meu irmãozinho foi parar, se ninguém me fala nem nunca me falou de que um dia saiu e nunca mais nada, voltar para onde também?, me dizem, e me enchem com a sua weltschmerz, mas minha irmãzinha mais a longe não sabe nem o que é isso, não sabe coitada, não sabe sequer porque naquele dia naquela rua decidiram dar cabo de sua pobre vida contida num saco de peles escuro e faminto que dentro de si era uma galáxia e a humanidade toda, e está em mim esse irmãozinho e irmãzinha que no morro da noite não canta mais nada, nem aguarda nada, aguarda no fundo do olho branco o azedume dessa solidão e me diz, me diz que diferença faz essa data esse calendário se há tantos anos e milênios vi meus irmãos e irmãs serem levados, levadas.
E eu não sei bem como que se faz para engolir essas partes da gente, e que me passam, perpassam, como que um mundo todo pode girar ainda desse jeito?, azul azul que me espanta e não mais canta não canta nada. E quisera eu ter a coragem do gás do banheiro, quisera eu ter gás no banheiro ou um apartamento com janela, mas não tenho, não tem. Ah e como é que faço como é que faz e quem responde?
Mas que me permita te dizer que a história está incompleta e esse corpo incompleto e distante de mim de você e que não consegue se traduzir nem dizer o que eu verdadeiramente queria, porque nesses vinteeum anos todos de átomos e moléculas e substâncias em mim se inscreve um sangue que não é só meu, que é aquele também que a mãe pega nas mãos do corpo de seu filho naquele chão de que, meu deus? de que é esse chão que é cama, que é túmulo, e também está no meu sangue aquele sangue que mãe nenhuma, nem amigo, nem pai, nem irmão nunca viu, aquele monte de ossos, calcário, cálcio em qualquer lugar encoberto pelo verdeamarelo das palmeiras e se equivoca tudo porque sinto ainda em mim e no meu corpo todas as coisas que os jornais nunca noticiaram que está contido no grito nunca dado dentro da cela, no grito que por deus, por deus, nunca saiu daquelas paredes, e que caminha nas imensidões dentro de mim e de meus companheiros calados, tão calados, ó deus, e essa primavera me sufoca em mim e nos meus dedos e no universo silencioso dos que vão embora sem nenhuma satisfação!