domingo, 1 de abril de 2012

1º de Abril de 1964

A dias esse texto vem me subido a boca e decido novamente, chegando ao estomago, e chegando a boca novamente. Me parece tão impossível entender e conseguir expressar algo racionalmente sobre a ditadura militar brasileira, e ao mesmo tempo, me retornam a memória fragmentos sobre como aprendi o que foi esse período, o que sentia sobre isso, e de que maneira tudo evoluiu até o dia de hoje.

Não sei ao certo quando me contaram ou descobri que havia existido uma ditadura militar no Brasil e que um dia os militares tomaram o poder e mataram e sumiram com pessoas. Me lembro que por muito tempo era essa a definição que tinha da ditadura, e apenas essa dimensão, no final das contas acho que sempre soube que ela aconteceu.

Lembro que minha mãe contava que sua mãe (minha avó) falava para ela que não podia falar mal do Figueiredo na rua, ou ela seria presa. Lembro que as vezes ficava imaginando como era a vida dos meus pais e avós nesse período e me vinha sempre a imagem do meu pai criança brincando no quintal da casa, meu avô, e só, como uma foto desbotada. Minha mãe é bem mais nova, nasceu em 73, e a única imagem que fazia dela nessa situação era essa acima narrada, da minha avó.

Acho que foi com uns 12 anos de idade que vi um documentário na cultura sobre a ditadura militar, me lembro muito pouco dele, me lembro da cena da cavalaria e do confronto mackenzie - usp. Foi nessa época também que fiquei sabendo sobre os caras-pintadas, e na época, achei que era a coisa mais revolucionária do mundo todo. Sempre me deu muito medo, todas aquelas imagens e correrias. Me dava medo a possibilidade de um dia desaparecer, de sumir. E a sensação de que eu teria feito algo e faria, caso acontecesse mais uma vez. Lembro que uma vez perguntei para o meu pai se ele tinha sido contra a ditadura e participado de algo, se tinha participado dos caras pintadas e ele me dizendo que aqui no interior essas coisas passaram desapercebidas, que não mudou a vida dos meus avós, ou a dele.

Depois lembro de conversar com uma amiga sobre a ditadura e pensarmos, eu e ela, no que faríamos, se seríamos presas, torturadas. Foi por essa época que comecei a pensar no terror que era perder uma amiga, ou amigo, pela ditadura, muito provavelmente porque me imaginava perdendo minha melhor amiga.

Na escola só com 14 anos que surgiu a ditadura militar enquanto conteúdo acadêmico. Lembro da euforia que me foi ao folhear a apostila encontrar 3 páginas sobre a ditadura militar brasileira com aquela imagem clássica e batida do menino pixando a parede com "Abaixo a ditadura" "Fora a ditadura". Esperei a aula ansiosamente, então descobri porque era chamada de "Golpe", que as pessoas de direita a chamavam de "Revolução democrática". Descobri o que era comunismo e com minha primeira namorada comecei a discutir o que era a esquerda, nossas divergências sobre o comunismo, e o anarquismo que ela preferia, claro que ambas na base dos maiores achismos.

Lembro que a aula foi uma decepção sem tamanho, e que aquelas 3 miseras páginas satisfaziam mais minha curiosidade. Lembro que o google me ajudou a descobrir muito sobre o período e escrever uma redação gigante na prova sobre os atos institucionais, seus desdobramentos, os órgãos de censura e repressão, mesmo sem ser perguntada sobre a ditadura, porque eu achei importante. Lembro que descobri o livro "Brasil: nunca mais" e que tudo que eu mais queria era encontrá-lo.

Desde então a Ditadura militar brasileira ganhou outro peso para mim. Eu entendia finalmente que era de esquerda, entendia os mecanismos e maquinarias utilizadas no período pelos militares -ou ao menos achava que já sabia de todos eles- e criei fixação em ler sobre a ditadura. Achava que era um absurdo os arquivos não serem abertos, e ainda mais os ditadores não serem julgados. E achava a lei da anistia um absurdo; afinal como comparar as vítimas com os vilões? Lembro que meu primo, à época, lia muito sobre fascismo e gostava das idéias, o que me causava uma grande ojeriza, ainda que eu achasse que era coisa de moleque.

Lembro que um dia sonhei que estava em uma cela e morria com uma bala na cabeça, e que por anos tive medo desse sonho e ficava tentando entender algo dele.

No ensino médio, aos 16 anos, lembro que tinha tanto um mês inteiro na grade escolar sobre a ditadura brasileira, quanto o trabalho de décadas e tinham sorteado para o meu grupo a década de 70, no Brasil, o que me deu a possibilidade de pesquisar "todos" os aspectos da ditadura e como ela refletia na moda, televisão, literatura, teatro, música, etc. Lembro que foi nessa época que descobri e me apaixonei por Ana Cristina César, que decidi que queria pesquisar a escrita dessa mulher, que me apaixonei pela contracultura e geração mimeógrafo. Que li a trilogia do Elio Gaspari sobre a ditadura, "Brasil: nunca mais", "O pasquim" e inúmeros outros. Lembro que na época a vontade de me tornar uma militante da esquerda era cada vez maior, e tinha um grupinho no colégio que dividia a mesma vontade. Começamos com uns stêncils, pixações e lamb na cidade, nada demais e hoje em dia sabendo que tudo sem linha política. Lembro que no teatro de décadas frisamos tanto a parte da ditadura, tanto, tanto e tanto. Lembro de duas das minhas professoras preferidas chorando na primeira fileira com essa parte. Lembro da adrenalina que me subia, mesmo sabendo que era um mero teatro.

No ano seguinte lancei a primeira edição do jornal "Quente e Letrista" que era um "especial" (com toda a ausência de modéstia que a juventude proporciona) sobre a literatura brasileira no período da ditadura e da importância de imprensa alternativa colocando-se como oposição a mídia hegemônica. Lembro de um dia, com a namorada da época, deitada na grama e pensando como faríamos e o que faríamos caso surgisse uma ditadura e fossemos pegas, lembro que a conversa terminou com as duas chorando.

Agora depois de tanto tempo, agora que já sou uma militante de esquerda me vejo tão engraçada começando a querer ser algo nessa esquerda, sem muita linha política, sem saber de nada, só, em um plano de fundo, com um medo gigante do autoritarismo e do estado burguês, com medo da ditadura, com medo da repressão. Não que algum desses sentimentos tenha desaparecido; fazem-se muito vivos aqui dentro.

É esse sentimento que me faz chorar toda vez que vejo o vídeo do Levante Popular da Juventude do escracho aos ditadores em diversos lugares. É esse sentimento que me faz tremer as pernas quando vejo as postagens das pessoas contra a ditadura e pela comissão da verdade. É esse sentimento que faz minha garganta secar quando vejo que alguém foi torturado, conheceu torturados, foi preso político, e ainda está vivo, e segue firme e forte na luta.

Talvez por isso seja tão difícil sair algo sobre isso, algo coerente e bom, bem formulado. Algo que aponte linhas políticas. Porque me perco ainda hoje nas recordações de quem felizmente não viveu esse período, mas sente em si o medo e a dor da ditadura, ainda que milhares de vezes menor do que aqueles que passaram por isso diretamente.

E hoje, militante organizada, sabendo que essa é uma opção para minha vida toda, fico vendo e revendo fotos de amigas, amigos, compas, lembrando da risada de cada um, de cada momento da militância, de cada professor que já tive de esquerda, lembrando de todas aquelas e aqueles que poderiam estar no mesmo partido que eu, tentando imaginar um mundo que não foi, e me vem um gosto amargo na boca. O gosto de ter medo de perder a qualquer uma, um que seja. O gosto amargo de querer justiça as minhas companheiras e companheiros que nunca conheci, de querer que todas as mães possam encontrar suas filhas e filhos.

Me vem uma náusea, um algo que não desce nem sobe. Ainda que eu saiba que "É preciso não ter medo, é preciso ter coragem de dizer." Me dá uma vontade de dizer para todas e todos o quanto amo cada um delas e deles, e o quanto são especiais para mim, e que não quero que nada de mal os aconteça.

Me vem, sobretudo, um ódio pelos militares, por todos aqueles que ainda hoje defendem esse período. Me vem um desejo gigante pela verdade e justiça. Me entala na garganta o grito de que não esqueço, não perdoo.

E é esse misto de sensações que precisava escrever. Ainda que nada faça exatamente sentido.