Com os sapatos mais ou menos velhos nos pés, o passaporte falsificado no bolso direito, segurando com as mãos uma mala pequena com tudo que aprendeu a chamar de seu, mesmo não tendo posse de nada daquilo, e agora, mordendo o lábio em um misto de medo e de coragem pensava; quem teria sido dono disso? Sabia que eram tempos difíceis aqueles, como se costumava dizer, sabia que se conseguisse atravessar a fronteira poderia ajudar a todos, quem seriam esses 'a todos' não sabia dizer; nunca tivera vínculos familiares, nem afetivos, talvez fosse referente aos filiadas do partido. O que sabia era que deveria tentar atravessar a fronteira, levar a mala com as informações do que se passava no pequeno vilarejo que morava, pedir auxílio, arrumar todas as coisas para novas famílias serem levadas para lá.
Afundando o sapato na neve cheia de lama, com as faces avermelhadas pelo frio, vendo fileiras de homens sem face marchando, se indagando quantos não teriam filhas com a mesma idade que ela, quantas daquelas mulheres que sentadas à sua frente vendo seus documentos falsos para dar um carimbo, não tinham também seus filhos sendo levados, e, para preservar o que quer que fosse, agora também roubavam filhos de outras mães. Há que ponto todos tinham chego?O que quer que fosse que a humanidade pretendia daquela forma?Ninguém percebia o absurdo que estourava? Saindo da fila com as mãos brancas segurando a mala e o passaporte seguia rumo aos vagões.
Somos incapazes de saber para onde a vida vai nos levar, somos incapazes de evitar que o amanhecer chegue, somos incapazes de evitar flores brotando, por mais que a neve, e a estiagem nos faça crer que a existência das mesmas é mais uma das nossas utopias.
Impossível não se segurar na mala de utopias. Uma mala cheia de ramos de alecrim.